POR GABRIEL HOEWELL, CARLOS MACHADO E RAMIRO SIMCH
No portão de sua aconchegante casa, Avelino Capitani confessa que se sente incomodado em falar do seu passado. É doloroso relembrar que sua vida “se resumiu nas prisões, na clandestinidade e no exílio”.
Capitani já foi chamado de Anjo Loiro, Charles Anjo 45, Lauro e outros nomes que nem ele mesmo lembra. Hoje não é mais Charles nem Lauro, os codinomes foram abandonados. Hoje não é mais loiro, porque o tempo quis assim. Hoje a pistola calibre 45 já foi deixada de lado. A vida agora é tranquila e pacata ao lado da esposa Teresa, com quem mora na Zona Norte de Porto Alegre. Seu passado, no entanto, é a própria história de um dos períodos mais turbulentos e obscuros da história do Brasil. Por ter consciência disso e desejar que esse momento se mantenha vivo na memória de todos, supera a dor e relembra com incrível lucidez o que viveu nas décadas de 1970 e 1980.
Estratégias de fuga – Parte 1
Avelino Capitani e Antônio Geraldo da Costa – o Neguinho – se mostram calmos para o julgamento. Todo o plano já está traçado em suas cabeças. Os dois logo serão julgados por serem chefes da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, considerada uma organização subversiva pelos militares que acabavam de chegar ao poder do país através de um golpe. Mais que isso, Avelino é classificado como agitador internacional. Uma grande responsabilidade dada pelos ditadores a alguém que recém passara dos 20 anos. Por essas razões não escaparam da expulsão da Marinha e da tortura. Do julgamento, no entanto, eles escapariam.
A dupla estudou detalhadamente tudo. Foram três meses planejando a fuga para o dia do julgamento. Sabiam que, se não a fizessem, não seriam soltos tão cedo. A Marinha nunca teve completo domínio dos marinheiros,por isso, Avelino e Geraldo têm certa influência sobre alguns deles e sabem quais são solidários à sua causa.
No dia do julgamento, os dois se misturam em meio aos marinheiros que lá estão. Conversam naturalmente com eles e de maneira discreta partem para a porta da frente do presídio. Quando se percebe já é tarde, e os fugitivos estão longe do Rio de Janeiro. Os documentos, confeccionados dentro da cadeia de maneira artesanal, e até grosseira, dão aos companheiros novas identidades.
Ficou para trás o Avelino, que com 14 anos deixou o interior de Lajeado para tentar a vida na capital gaúcha. Pelo caminho também ficou o Avelino que, aos 18, saiu de Porto Alegre rumo ao Rio de Janeiro, com a perspectiva de encontrar na Marinha a possibilidade de conhecimento, estudos e viagens inesquecíveis.
Na realidade, o que ele encontrou nas Forças Armadas foram as contradições do mundo. Então, fundou a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais para protestar por melhores condições de vida para esses trabalhadores. Agora, ele pagava por suas decisões e pelo sistema da época, e entrava em um ônibus para o Uruguai, onde passaria um ano escondido. O menino ingênuo da roça dera lugar a um revolucionário que causará dor de cabeça aos golpistas de 1964.
De Sierra Maestra a Caparaó
Durante o período na República Oriental, Avelino acompanha um debate político que cresce. Chega à conclusão de que é quase impossível enfrentar a ditadura pelo voto, e a solução é a luta armada.
Ele viaja, então, a Cuba para realizar um treinamento de guerrilha. É um período duro, mas rico em sua vida. Sete meses aprendendo estratégias, táticas e manuseio de armas – das mais leves até bazucas, metralhadoras e explosivos. Depois, mais três meses no meio do mato, na encosta da Sierra Maestra, onde começou a mais famosa das revoluções do continente, em 1959. Ao lado de pouco mais de vinte guerrilheiros, segue os ensinamentos de Ernesto Che Guevara. É um curso completo, que transforma aquele soldado brasileiro em um defensor da “grande pátria latino-americana de Bolívar”.
O que se aprende com Che é trazido para o Brasil. O plano consiste em implementar vários focos guerrilheiros dentro do país. Só muito tempo depois Avelino percebe que aí mora a raiz do fracasso de muitas guerrilhas. A “teoria do foco”, que acredita em vários pequenos motores para girar um maior, comete uma grave falha ao priorizar a questão técnica em vez do aspecto político e social.
Áreas como a Baixada Fluminense, tomada de camponeses sem-terra, por exemplo, seriam ideais para a implantação de luta armada, que logo teria apoio da população local. No entanto, a decisão acaba sendo por regiões como a Serra do Caparaó, em Minas Gerais, no meio de uma natureza exuberante e de difícil acesso para o Exército.
Tecnicamente a situação é perfeita, mas o apoio popular não existe. Bastava Avelino tentar pedir comida a uma camponesa para ser denunciado. Em pouco tempo os guerrilheiros são presos pela polícia mineira, e Capitani é mandado para o presídio de Juiz de Fora.
Histórias de Avelino
No período em que o Anjo Loiro ficou preso, conheceu os membros de outras organizações clandestinas que lutavam contra o regime militar. De dentro da cadeia, ouvia falar de importantes líderes da luta armada – como Dilma Rousseff e Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, o primeiro marido dela – e seus feitos na VAR-Palmares.
De dentro do movimento também viu sair traidores, como o conhecido Cabo Anselmo, que entregou companheiros de luta aos militares. Avelino ainda lembra do período em que esteve exilado no Chile e recebeu uma ligação do Cabo para se encontrarem. Na memória, veio à tona a notícia de que Anselmo tinha sido preso algum tempo antes. “Como ele poderia estar lá no Chile se ‘tava’ preso? Quando se era preso tu tinha duas possibilidades: ou se entregava ou morria. Ou o Cabo tava morto ou trabalhando pra eles.” Avelino nunca foi ao encontro, mas tinha certeza de que era uma armadilha.
Ao contrário do que muitos pensam, Capitani nunca foi membro do Partido Comunista Brasileiro. Participou de algumas reuniões do “Partidão” e compartilhava das ideias, mas achava que a política não era suficiente para derrotar a ditadura que assolava as ideias de liberdade e justiça. A melhor forma era desestabilizar as estruturas do regime por meio da via armada.
Estratégias de fuga – Parte 3
Durante ações em bancos, os guerrilheiros mais experientes apenas participam da parte estratégica e fazem a segurança. É o caso de Charles, codinome de Avelino na época. Neste dia, um ano após fugir pela segunda vez da cadeia, o Anjo Loiro é o encarregado de transferir os armamentos de um carro com a placa fria, falsa, para um de placa quente. É no momento da troca que um carro de polícia chega. De cara desconfiam dos rapazes. Avelino percebe e entra rapidamente no Fusca pedindo para que seu colega arrancasse. Logo atrás vêm os policiais. O motorista entra em pânico. Não sabe mais onde é a primeira, a segunda marcha, nem de perto lembra o rapaz que há pouco tempo dava cavalos de pau.
“Vão nos matar”, pensa Capitani. Ele saca sua arma e pede para que seu colega diminua a velocidade. O objetivo é acertar nos pneus do carro da polícia. Acertaria, se não estivesse o motorista completamente perdido. Em um instante o Fusca se esborracha contra um ônibus. Avelino bate a cabeça no teto e desmaia. Quando volta a si, vê o companheiro de braços erguidos se rendendo.
Para quem já cansou de ser torturado e preso, entregar-se não parece a melhor atitude. Capitani não aceita: puxa a arma de volta e vai para cima dos policiais. Quando se prepara para o tiro, uma rajada de metralhadora atinge seu braço. Com a outra mão, ele segue atirando. Surpresos com sua atitude, a polícia se atrapalha. O homem que vai a frente cai duro com um tiro na nuca dado pelos seus próprios policiais. Há tempo para Avelino fugir.
Sangrando pelas ruas do Rio de Janeiro, com uma arma na mão e outra na cintura, o Anjo Loiro corre sem parar. Sobe o primeiro morro que encontra, deixando uma trilha de sangue pelo caminho.
A noite se aproxima; Charles acha no morro um lugar estratégico. Com as unhas, começa a cavar no chão; esquece-se do braço baleado. Com a ajuda de uma pedra e de suas armas, cava ainda mais. Percebe, então, que a polícia se aproxima e enterra-se com terra e capim. Uma meia dúzia de cabritos salta por cima dele. É a prova de que está seguro, ninguém o enxergará. Por diversas vezes os policiais passam bem perto, sem o encontrar.
A febre provocada pelo ferimento vai se agravando e a sede é terrível, mas só no anoitecer do dia seguinte Avelino pode sair do esconderijo, quando ouviu as camionetes partindo com policiais inconformados: “Esse cara não ‘tá’ mais aqui, senão tínhamos achado. Ele fugiu.” E essa tese pegou. Exceto para aqueles que se espantaram com o extenso rastro de sangue deixado pelo caminho e acreditaram que ele estaria morto.
Do luto à vida
A mãe de Avelino, ao saber que o filho “estava morto”, usou preto por um longo tempo. Durante todo o período que lutou, exilou-se e viveu escondido, o Anjo Loiro mal manteve contato com a família. Ele sabia que o primeiro lugar que os militares o procurariam seria em casa, pois sabem que na hora da angústia, o socorro e o afeto do lar são a primeira opção. Somente mandava mensagem quando tinha certeza que não havia perigo.
A vida de Avelino Capitani é cheia de histórias. Se os gregos criavam a mitologia para narrar o inexplicável, o Anjo Loiro é o próprio mito brasileiro. Segundo ele, uma música retrata a sua história: Charles, Anjo 45, composta por Jorge Ben. O cantor não admite de onde veio a inspiração para sua música – na verdade já negou, voltou atrás e negou de novo.
Mas o fato é que Capitani sobreviveu ao improvável. Depois de se enterrar vivo para fugir, partiu para um longo tempo no exterior. Passou pelo Chile, por Cuba e por vários países da Europa. Voltou ao Brasil em 1975, clandestinamente, e rodou escondido de Norte a Sul. Só conseguiu a anistia em 1980, quando, finalmente, após quase cinco anos de relacionamento, pode dizer a sua mulher Teresa que seu nome não era Lauro, mas, sim, Avelino.
Hoje ele vive da pensão de anistiado em uma casa simples, mas aconchegante, na Zona Norte de Porto Alegre. Avelino espera pela instalação da Comissão da Verdade, proposta pelo Governo Federal. Não quer regalias, aplausos, medalhas; quer apenas que a verdadeira história venha à tona, para que os erros do passado não se repitam. “Não guardo rancor dessa época, já perdoei meus torturadores. Levei 10 anos pra isso, até que um dia consegui. Me libertei do rancor, senão eu ia morrer abraçado nele.”