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Língua falida


POR GABRIEL HOEWELL E ARTHUR VIANA


“Nós produzimos na diversidade, mas a escolha é feita com o olhar único, compreendem? Isso rouba-nos o amor próprio, a autoestima das literaturas por si próprias e, portanto, rouba a autoestima dos povos”.


Lídia Jorge vê a falência da língua brasileira em detrimento do inglês. A literatura de língua portuguesa precisa, e quase sempre precisou, do batismo anglo-saxão. Cada vez menos leitores brasileiros conhecem autores portugueses e vice-versa. Foi esse o cenário que a escritora portuguesa nos apresentou quando nos recebeu no saguão do Hotel Embaixador, Centro de Porto Alegre, em maio de 2013.


De lá pra cá, é verdade, vão-se quase dois anos. Entretanto, não se pode dizer que muita coisa mudou: a aproximação entre os países lusófonos, defendida pela autora, segue sem intensidade, e a crise econômica portuguesa, que afetou investimentos na área da cultura, não está solucionada.


Lídia Jorge é uma das mais destacadas escritoras portuguesas da atualidade. Nascida no Sul do país em 1946, ela viveu parte da juventude em Angola e Moçambique, onde foi professora. Entre romances, antologias de contos e peças de teatro já se vão mais de 15 livros publicados, como O dia dos prodígios (1980) – escrito logo após a Revolução dos Cravos –, A Costa dos Murmúrios (1988) – inspirado por seu período na África – e A Noite das Mulheres Cantoras (2011) – que em 2015 substituiu Saramago como leitura obrigatória para o vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tais obras a colocam entre os mais vendidos e premiados autores de Portugal.


Houve um período em que a literatura portuguesa e a literatura brasileira dialogavam bastante. A senhora percebe isso hoje ou agora elas caminham paralelamente?

Eu penso que hoje caminham paralelamente. É muito difícil dizermos que os escritores brasileiros influenciam os portugueses e vice-versa. Há um interesse mútuo pelo que está a acontecer no Brasil ou em Portugal, mas os autores estão muito individualizados e eu não posso dizer, por exemplo, por quem sou influenciada.


Isto é, hoje se pode dizer que, em termos de poesia, Fernando Pessoa influencia toda a gente, também o Brasil, não é? Em sentido inverso, a autora que mais influencia Portugal é, sem dúvida, Clarice Lispector. E é muito curioso que sejam dois autores do ciclo modernista. Porém, eu tenho dificuldade em dizer quais são os autores que neste momento recebem influência do outro, porque a personalidade individual de cada autor é muito forte. Percebe-se que estes autores funcionam como leituras, mas não vejo um aproveitamento textual.


Mas a senhora acredita que isso é positivo, ou deveria haver uma conversa maior entre as duas?

Deveria haver mais conversa, não por fenômenos de imitação, mas de conhecimento. Deveria haver mais aproximação, sobretudo em relação ao grande público. Porque em relação aos escritores, já aproximamo-nos. Lemo-nos uns aos outros. Mas não passa dum círculo muito restrito e, portanto, fica no nível de estudos universitários, dos grandes leitores, grandíssimos leitores.


Em termos populares, é difícil encontrarmos os nossos livros no Brasil, é difícil os autores brasileiros serem lidos em Portugal. A não ser um fenômeno, como é o caso dos livros do Chico Buarque. Mas para além desses fenômenos, não se fazem best sellers – não é que o best seller seja um alvo, mas pode ser um sintoma, não é?


Penso que Saramago se popularizou de alguma forma, não é? Mas, por exemplo, o Lobo Antunes tem dificuldade em popularizar-se [por aqui]. Agustina Bessa-Luís não é conhecida do público brasileiro. Portanto, há aqui uma espécie de cápsula, como se a população do Brasil tivesse uma indiferença em relação à literatura portuguesa, e o povo português, em relação à literatura brasileira.


Mas será que isso não tem relação com o mercado editorial, com o fato das editoras não fazerem esse intercâmbio?

Sim, sem dúvida. A questão é editorial, vê-se muito bem: quando os editores apostam, os autores aparecem. Por exemplo, em Portugal houve uma aposta forte a certa altura no Bernardo Carvalho e muita gente começou a lê-lo. A Adriana Lisboa, com a política editorial em torno do prêmio Saramago, que conhece a Adriana, ajudou-a. Ela passou a ser de alguma forma conhecida. O que se percebe depois é que não há um prosseguimento. Essa dificuldade não é propriamente dos autores brasileiros – tem a ver com os autores, pura e simplesmente. Porque nós próprios, em Portugal, sentimos essa dificuldade. De há uns anos a esta parte, a aposta é feita em livros de literatura light. Por toda a parte, são fenômenos de massificação, e best sellers made in USA. Quer dizer, isso é um fenômeno que vocês estão a viver, e nós estamos a viver. Eu vou às livrarias aqui e vejo, sobretudo nas não especializadas. São os mesmos títulos. Isto é, nós nos tornamos de facto colonizados pela cultura anglo-saxônica.


Fernando Pessoa só foi conhecido quando passou pelo crivo da França, quando ela o promoveu. E agora Clarice vai ser muito importante porque está a ser promovida nos Estados Unidos. Isto é, nós antes de sairmos dos nossos territórios, temos de ser batizados pela língua inglesa. É um problema do nosso tempo. Eu não digo que é uma catástrofe, mas é um problema que tem de ser contornado. Nós produzimos na diversidade, mas a escolha é feita com o olhar único, compreendem? Isso rouba-nos o amor próprio, a autoestima das literaturas por si próprias, e, portanto, rouba a autoestima dos povos. Isso está a acontecer. Portanto, quando eu digo que a literatura brasileira padece desse problema, eu digo que padece tal como a literatura francesa, italiana ou a de língua espanhola.



A ideia do novo acordo ortográfico vem nessa linha de tentar manter uma integração. Mas a senhora acredita que isso é efetivo?

Eu vou dizê-los que o acordo ortográfico é uma medida muito pequenina. Sozinho não é nada. Se for sozinho, foi um esforço que se fez a uma geração para nada. O acordo ortográfico foi pensado para ter uma sequência de ações subsequentes que viessem a aproximar de fato os países, num projeto cultural, não num projeto linguístico. Linguístico só, não é nada. Ainda por cima na estrita linha daquilo que é a ortografia. A ortografia são risquinhos, a língua é um corpo muitíssimo maior do que isso, não é? E a cultura é uma coisa muitíssimo mais vasta do que isso.


Agora, essa mudança é sobretudo um projeto político, que apareceu há 21 anos, e a ideia foi depois que Portugal perdeu as últimas colônias. Portugal disse aos outros países: “Nós não queremos mais manter a ideia antiga de que somos donos da língua”. E houve uma proposta para que a língua portuguesa da Europa fosse submetida a um mínimo de regras comuns. Isso demorou 30 anos, mesmo assim está sendo muito difícil começá-lo.


Mas, infelizmente, o acordo, que foi feito também para simplificar e aproximar, deixou algumas incongruências que são muito vistosas, que são muito ridículas até, como é o caso do “pára/para”. Mas ao todo serão aí 20, 30 ofensas graves. Tirando isso, nós iríamos mantendo toda a diversidade, mas unindo onde é possível, era um símbolo. Isso permitiria uma coisa muito importante, que era, por exemplo, as bases de dados eletrônicas aproximarem-se mais, porque nós estamos em falência, o português está em falência, em face do espanhol e em face do inglês. As bases de dados com a ortografia aproximada ajudam-nos a aproximarmos, mas era um trabalho pra ser feito em conjunto.


E eu devo dizê-los que tenho pena em perceber que por causa do acordo ortográfico alguns fantasmas brasileiros e portugueses vêm à tona. Vejo no Brasil muita gente que diz que não tem nada que fazer o mínimo esforço pra se aproximar do pigmeu, do pequeno país europeu, o que é uma pena. E vejo em Portugal haver um medo do neocolonialismo, agora ao contrário, que a mim me parece surpreendente – pessoas que dizem “a mim ninguém me faz falar como aos brasileiros”, “isso foi uma cedência total ao Brasil”.


E choca-me que pessoas portuguesas, digamos, tenham racismo linguístico.


É por isso que passa essa falência da língua portuguesa de que a senhora falou, ou é um processo mais complexo?

Este é um processo mais complexo. Quer dizer, este é um processo. Repare: nós, neste momento, estamos a disputar os mesmos territórios linguísticos dos franceses, somos tantas as pessoas da língua francesa quanto as da língua portuguesa. A vantagem da lusofonia é que a população que fala português tá crescendo. Já a francofonia tem instrumentos de coesão da língua que nós não temos: enciclopédias, toda a literatura, as escolas, a Aliança Francesa. Todo o suporte cultural deles está organizado, e o nosso está todo ou quase todo por organizar.


Não ponho isto em termo de guerras, de quem é mais, ou menos. Ponho em termos de eficácia e de felicidade das pessoas mais jovens. Quer dizer, pensando no futuro, pensando que é bom que as pessoas se orgulhem da sua língua, que ela seja uma língua de trabalho, que as pessoas na Inglaterra estejam a estudar português, estejam a abrir escolas no Reino Unido com ensino de português para que as pessoas venham trabalhar para Portugal, para a África e para o Brasil.


E isto dá-me uma alegria, sabermos que nós podemos proporcionar um espaço linguístico onde haverá trabalho para as pessoas, onde haverá novas residências no futuro.


E, no meio disso, o acordo ortográfico é nada, é apenas um símbolo, é como um aperto de mão para dizer “ok, a partir de agora nós vamos trabalhar”.


A senhora acha que essa sobrevivência linguística também tem relação com o sucesso econômico dos países?

Claro que tem. Quer dizer, o antigo grego morreu, exatamente pela ação militar e pela ação econômica. O latim expande-se pela ação militar e pela ação econômica. Mesmo o espanhol, não é? O inglês não é um sucesso da economia? É. E o português também será um sucesso da economia. Portanto, eu acho que é cego quem não quer ver que isso é uma coisa que se tem de fazer em conjunto, onde a literatura tem um espaço muito importante. Porque uma língua que não se orgulha dos criadores da língua, é uma língua em falência também.



A senhora falou do Saramago, que acho que é o grande nome da literatura portuguesa recente, pelo menos aqui no Brasil. A morte do Saramago influenciou os rumos da literatura portuguesa?

Influenciou muito, sabe. De uma forma muito interessante. Há alguns autores muito jovens que imitam Saramago. Porque é assim que se começa: escolhendo um autor de que se gosta e escrevendo um pouco como ele, não é? A Virginia Woolf, aos 40 e tal anos, dizia “se leio Sterne, escrevo duma maneira. Se leio Yates, escrevo doutra”. E há autores, naturalmente, que imitam Saramago. Agora, o que se passa é que eu acho que a importância enorme que o Saramago teve, e que influenciou muito, é uma espécie de orgulho que os portugueses passaram a ter pela literatura. Porque até aí tinha havido Camões, depois Pessoa, mas nenhum deles interpretava, digamos, o sentido popular. Ora, o que acontece é que Saramago é o exemplo de alguém que vem de classes muito desfavorecidas e sobe, que vem de analfabetos e faz um salto para um homem culto. Portanto, foi esse exemplo que ele até o fim da vida sempre mostrou, inclusive quando recebeu o prêmio Nobel. Mas não só isso como o fato de a partir dele ter sido prêmio Nobel, os portugueses que não ligavam à leitura passaram a dizer: “Vou procurar que o meu filho agora leia”. Houve uma espécie de revolução naquele país, de crença de que a literatura fazia bem.


Eu queria voltar um pouco pra essa questão da economia que a gente comentou antes. Como a senhora acha que a crise financeira que atingiu a Europa afetou o mercado e o cenário cultural do continente? Fica mais difícil surgir novos nomes?

Até agora ainda não se sentiu dificuldade de fazer novos nomes surgirem, porque há um auxilio muito grande hoje em dia que é a ferramenta da internet. Onde se sente muito mais é na publicação dos autores canônicos, dos clássicos, dos que tem propostas mais específicas literárias. Então aí sim, porque os equipamentos de cultura estão desapoiados, não só em Portugal, por toda a Europa. Enquanto aqui começa um investimento nas feiras do livro, nas bibliotecas, nas redes de leitura, nós que já tínhamos feito esse investimento, estamos num estado de retração. Portanto, a economia pode de fato vir a criar um problema de retrocesso em relação àquilo que se tinha ganhado. E em Portugal – de uma maneira diferente daquilo que acontece em Espanha, França ou Alemanha, onde a população leitora está enraizada há gerações e gerações –, o leitor é duma geração muito recente, e agora encontra a grande rivalidade dos mídia em relação à leitura, que rouba imenso.


Os jornais dão muito menos espaço à crítica, as revistas de literatura fecham, muitas livrarias fecharam portas, e os programas de previsão de incremento à leitura ficaram barrados, diminuíram ou quase se extinguiram.


É uma machadada muito forte, e nós estamos muito apreensivos de facto com isto. Por que no meio disso o que é que se vende? As [Cinquenta] Sombras de Grey [no Brasil, Cinquenta Tons de Cinza]. Revistas cor-de-rosa, quer dizer, a leitura passa a voltar outra vez aos índices de, digamos, certa negatividade.


A senhora viveu em Angola e Moçambique nos últimos anos do colonialismo português e já escreveu diretamente sobre esse período em A Costa dos Murmúrios. Mas, mesmo quando não fala sobre esse assunto, como o fato de ter testemunhado essa situação afetou sua escrita?

Foi determinante na minha escrita. Porque eu tive vivências, e as minhas vivências adultas foram feitas nesse domínio. Eu tinha 20 e poucos anos e o fato de ter visto tanta gente a perder membros, morrer, famílias desfeitas, e perceber que a história indicava outro rumo, esse paradoxo foi tão forte, que tem influenciado tudo o que eu tenho escrito. Por exemplo, eu não sou uma pessoa capaz de escrever meramente do ponto de vista psicológico, eu preciso da história. Mesmo quando eu começo a pensar que vou só escrever uma historia ontológica, uma história do ser, das plantas, dos animais, a relação com o além, com o cosmos, sempre me perpassa outra coisa que é a praça pública, onde se deixam coisas e lá é o sítio onde as pessoas podem decidir o bem e o mal da coletividade.


Então, isso pra mim foi uma experiência absolutamente importante, e para a minha vida mesmo, porque me ensinou a ver o preconceito que umas culturas têm contra as outras, e o preconceito em todos os níveis: o preconceito face ao diferente, face àquilo que vem de fora, face àquilo que tem outra religião, face àquilo que tem outra educação. Foi muito importante, humanizou-me, se é que assim posso dizer. Tornou-me uma pessoa com mais capacidade de ler sentimentos, de ler projetos, de ler desejos, desejos pessoais e coletivos.



Agora, sobretudo o que eu acho é que é um processo histórico. As mulheres aprenderam a ler e a escrever a sua vida há muito pouco tempo. Tem um século de experiên ia, só. Portanto, não dividir homens prAum lado e mulheres pro outro ainda vai demorar algum tempo, mas eu vejo isso de certa forma pacífica. Não entro, digamos, no conflito. Entro no conflito feminista no plano social, não entro no conflito feminista no plano literário. Vejo que há diferenças, mas prefiro viver essas diferenças de forma estoica a falar delas demasiado em voz alta, porque acho que é um caminho que nós temos de fazer primeiro conosco próprias. Acho que nós temos de combater no plano social, sobretudo. E aqui sendo pessoas honestas na escrita, fazendo aquilo que um escritor quer seja homem quer seja mulher deve fazer, que é entregar-se em absoluto àquilo que é a sua arte, ser verdadeiro e manter a sua inocência intocável. Pra mim isso é o que é importante, não se negoceia. Obrigada.

É bem complexo. Acho que hoje em dia os homens e as mulheres têm o mesmo acesso à publicação, têm o mesmo acesso ao espaço, acho que temos o mesmo acesso à voz. Simplesmente quando a literatura começa a ser poder, estamos ainda muito distanciados. Quer dizer, as mulheres aparecem ainda subalternizadas. Mas eu acho que é uma questão de tempo, a cada ano que passa nos tratamos todos num plano de muito mais igualdade. Acho que há barreiras que estão a ser quebradas.


Infelizmente, há uma coisa que eu devo dizer e que é contra o lado das mulheres, é que, no projeto da escrita frívola, as mulheres fazem-se muito a jeito, e dão rosto e mão àquilo que de pior a literatura nos tem. As [Cinquenta] Sombras de Grey são escritas por uma mulher. Quer dizer, é alguma coisa que me parece estranha que se aconteça. Por que aqui as mulheres tão facilmente são seduzidas para escrever sobre aquilo que é o fútil, não é? E espanta-me muito isso, não sei, não quero imaginar que seja uma coisa biológica, porque biologicamente tudo diria para que as mulheres não o fizessem. Nossa biologia, se formos superficiais, se olharmos só a parte biológica, carnal, diríamos que as mulheres deveriam ter, por sua própria configuração, mais pudor. Mas é exatamente o contrário, não é? Como se houvesse uma espécie de tentativa da criação de um espaço de frivolidade absoluta. Isso é uma coisa que me espanta, que as mulheres digam “ah, vou contar tudo que aconteceu entre os meus lençóis”. Isso é o lado que eu acho mais surpreendente e negativo, mas são as próprias mulheres que o fazem, portanto isso vai se resolver.


Agora, sobretudo o que eu acho é que é um processo histórico. As mulheres aprenderam a ler e a escrever a sua vida há muito pouco tempo. Tem um século de experiência, só. Portanto, não dividir homens pra um lado e mulheres pro outro ainda vai demorar algum tempo, mas eu vejo isso de certa forma pacífica. Não entro, digamos, no conflito. Entro no conflito feminista no plano social, não entro no conflito feminista no plano literário. Vejo que há diferenças, mas prefiro viver essas diferenças de forma estoica a falar delas demasiado em voz alta, porque acho que é um caminho que nós temos de fazer primeiro conosco próprias. Acho que nós temos de combater no plano social, sobretudo. E aqui sendo pessoas honestas na escrita, fazendo aquilo que um escritor quer seja homem quer seja mulher deve fazer, que é entregar-se em absoluto àquilo que é a sua arte, ser verdadeiro e manter a sua inocência intocável. Pra mim isso é o que é importante, não se negoceia. Obrigada.



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