É de chamar a atenção dos olhos mais atentos que, em frente ao consulado da Finlândia – país notável pela elevada renda e pelo impecável Índice de Desenvolvimento Humano –, dezenas de pessoas procurem espaço na calçada para esperar por um lugar para dormir. É que em frente ao imponente consulado, atravessando a Rua Comendador Azeredo, em Porto Alegre, encontra-se um galpão, onde funciona o Albergue Municipal, administrado pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC).
Luís Augusto Faleiro acende seu palheiro e o traga sozinho, esperando seu nome ser chamado. A chamada é o sinal de que é sua vez de entrar no albergue, tomar banho, jantar e descansar. A vaga já é certa. Luís Augusto – hoje desempregado, após ter trabalhado como metalúrgico e guarda – já é usuário do abrigo há alguns meses e, por isso, tem seu lugar garantido. A espera foi longa apenas na primeira vez, quando teve de chegar às 15h para garantir sua entrada, que só ocorreu por volta das 20h. Depois disso, seu nome foi para uma lista, e passou a ser chamado todas as noites para entrar, a partir das 19h.
A princípio, os galpões recebem as pessoas cadastradas por um período de 30 dias. Depois desse tempo, elas são encaminhadas para outros abrigos, como o Instituto Espírita Dias da Cruz e o Abrigo Beneficente Monsenhor Felipe Diehl, para que o Albergue Municipal (o único mantido somente pela Prefeitura) possa acolher mais gente, explica Franke Hendler, gerente do local.
Logo que chegam, os idosos, as mulheres e os transexuais são separados do restante. São eles os primeiros a entrarem. Quem já dormiu lá, pelo menos desde a noite anterior, entra em seguida. Se ainda houver vagas, aqueles que estão lá pela primeira vez também podem entrar; senão, procura-se uma solução em outros albergues.
No meio-fio, Alexsandro Lopes descansa. Espera a abertura dos portões para repousar suas pernas, cansadas depois de varrer as ruas. As vestes laranjas dos varredores são comuns entre os que esperam na fila. Alexsandro saiu do bairro Guajuviras, em Canoas há três meses e veio tentar a vida em Porto Alegre, onde se tornou varredor. Aqui, se envolveu com drogas, mas, desde que começou a frequentar diariamente a Igreja Universal do Reino de Deus, se livrou do problema, afirma.
Alexsandro é só mais um em meio às dezenas de pessoas que aguardam. A grande fila se justifica. Uma vez dentro do abrigo, o usuário tem 150 camas à disposição, duas refeições completas (janta e café-da-manhã) e dois banheiros – um masculino e outro feminino. Valdemir Estran, educador social que trabalha no albergue, e Giovana Schenkel, monitora no local, não negam que, por vezes, a estrutura é precária. As divisões entre os quartos são improvisadas; os poucos chuveiros – cinco, quando todos funcionam –, geram grandes filas para o banho; e os vasos sanitários não estão nas melhores condições. Ainda assim, para muitos, é mais vantajoso que ficar na rua.
Todas as noites, uma van circula pela cidade, tentando trazer para o abrigo alguns dos 1.203 moradores de rua que a FASC estima haver, em uma pesquisa de 2008, em Porto Alegre. Os dados são os mais recentes e, ainda que um pouco defasados, permitem também concluir que 49,9% da população de rua porto-alegrense está nos bairros Centro, Independência e Floresta. Isabel Cristina de Borba, que participa de abordagens realizadas pelo albergue, diz que a recepção costuma ser negativa. Ela conta inúmeros relatos de agressões. A resistência por parte dos moradores de rua ocorre por várias razões. Não é apenas o fato de não ser possível consumir drogas no abrigo que afasta as pessoas. Na verdade, esse motivo passa a ser pouco relevante no momento em que o albergue permite a entrada sob o efeito de entorpecentes. Franke conta que alguns até deixam de ir ao albergue porque usuários entram alcoolizados. A questão é muito mais territorial. As pessoas se estabelecem em um local, conhecem as redondezas, constroem relações e, naturalmente, não querem ser retiradas de lá. Isabel ainda questiona uma atitude comum: “Às vezes, as pessoas, na intenção de ajudar, fornecem comida e cobertores aos moradores de rua. Isso acaba atrapalhando, mantendo eles na rua.”
Dentro do albergue
No albergue, há três tipos de quartos: masculino, feminino e, desde 2004, os quartos para transexuais. A maioria das camas é destinada aos homens, que somam 85% dos usuários, estima Franke. O clima lá é tranquilo e as confusões são raras. “Se há alguma relação na rua de poder, de mais forte sobre mais fraco, aqui a gente não pode permitir isso”, afirma o gerente.
Às 19h, a entrada no galpão é liberada. As primeiras a entrar são as mulheres. A expressão dessas 20 pessoas sentadas, enquanto têm seus nomes escritos nos pertences, é triste. Uma das mulheres olha para cima, a buscar um sinal divino, enquanto reza. Outra prefere procurar o transcendental lendo a Caras.
As carteiras de identidade, recolhidas na chegada, são devolvidas por um funcionário que já sabe de cor a maior parte dos nomes. E então, as mulheres são liberadas para pegar as toalhas e os sabonetes, fornecidos pelo albergue, e ir para o banho.
Logo após, mais 20 pessoas entram no albergue. São idosos e deficientes físicos ou mentais. Seguem o mesmo trajeto daquelas mulheres. Escorados na parede, três amigos, já veteranos de albergue, conversam. Gilberto Luft adora ler. Tem nas mãos uma IstoÉ de dezembro de 2010 – “pra quem não leu ela é atual”. Há algum tempo Gilberto não pode mais trabalhar, pois está com três costelas e uma das mãos quebrada e já desistiu da fila do SUS. Luiz Kern, que está ao seu lado, também luta contra as dores. As sequelas de uma cirurgia na perna deixam seus pés inchados. Recentemente, arranjou um truque na hora de deitar que permite que durma mais aliviado. Durante o dia, no entanto, os pés não têm sossego, caminham pela cidade vendendo “pretinho” para limpar pneus de carros. Os tempos já foram melhores, lembra Luiz. Ele se orgulha de ter jogado futebol no Taquariense, ao lado do hoje treinador Paulo Porto. Apesar disso, é torcedor fanático do Cerâmica, de Gravataí, e lamenta o último resultado na Série D. Luiz cresceu em Taquari, onde jamais aprendeu o alemão para não apanhar dos colegas durante a Segunda Guerra Mundial. Na vida adulta, chegou a trabalhar no Polo Petroquímico de Triunfo, e fez negócios com a 3M, uma grande multinacional. “Até que o Brizola me fodeu, perdi a esposa e fui para a rua”, simplifica. Gilberto discorda do amigo. Ele, ao contrário, gostava de Brizola. O terceiro homem, Luiz Bortoluzzi, ressalta que foram Collor e Sarney que acabaram com ele. E começa a discussão política. A história de Luiz Bortoluzzi é um pouco mais complexa. Mora há cinco anos em albergues. Na primeira vez, sentiu-se muito desconfortável. Com o tempo, se acostumou. Bortoluzzi procurou os albergues devido a problemas financeiros. Depois de ter emprestado seu nome para um amigo abrir uma empresa, sujou seu CPF e nunca mais conseguiu limpá-lo. As dívidas se acumularam, ele deixou Canoas e veio para Porto Alegre. Nos domingos, ainda volta para Canoas, para rever a família. Porém, prefere não ficar lá, quer reorganizar a vida sozinho, conta sentado em um dos bancos do fumódromo, que reúne boa parte dos abrigados após o jantar. Luiz está lutando para se restruturar, não quer se acomodar como alguns de seus colegas, que já moram no abrigo há 15 anos.
Maria Jussara Carvalho, entretanto, não teve opção. Há 10 anos em albergues, se sente mais segura lá. Saiu de casa quando sua família se desintegrou, ela perdeu os pais e a casa onde morava ficou para outros herdeiros. Suas filhas moram até hoje com uma conhecida da família. “Eu morei com alguns namorados, mas não deu certo. Tinha problema de alcoolismo, agressão.” Hoje ela trabalha fazendo faxina, e conta: “Às vezes, minhas amigas perguntam por que não junto um dinheirinho, alugo um lugar pra mim. Até já pensei nisso, mas eu tive várias perdas, sabe? Então eu tô tentando me reerguer.” A quebra dos vínculos familiares é a principal causa das pessoas que não têm onde morar. “Ninguém brotou do chão. As pessoas têm uma história; às vezes, de violência”, explica Franke. Jussara foi a única das mulheres que se disponibilizou a conversar conosco. “Geralmente as mulheres são mais fechadas, pela história de vida, muitas vezes de abuso”, conta Giovana Schenkel.
São várias as histórias e as origens de quem frequenta o albergue. Outro monitor, Caio Basegio, conta que “já estiveram aqui advogados, professores, que passam por situações adversas e, sem uma estrutura que os suportasse, acabaram assim”. Boa parte dos usuários – a maioria deles entre os 28 e os 55 anos – perdeu a família, muitos se envolveram com drogas ilícitas – quando jovens –, ou com álcool – quando mais velhos.
Mas nenhuma história chama tanto a atenção, nem intriga tanto os monitores do albergue quanto a de Ja Young Lee, há menos de um mês dormindo no local. Lee chegou da Coreia do Sul há 30 anos, foi para São Paulo vender tecidos. Neste ano, Lee viajou para Santana do Livramento em busca dos free shops para comprar o uísque que, segundo ele, todo coreano adora. Depois da passagem pela fronteira, foi conhecer Porto Alegre. Perdido pela cidade, acabou assaltado, perdendo as malas e ganhando roxos pelo corpo. Aqui, se encontra sem carteira de trabalho, nem dinheiro para voltar a São Paulo. A Prefeitura lhe sugeriu que fosse ao Albergue Municipal. Lee procura compatriotas que o ajudem, mas a busca é difícil: “Em São Paulo, somos mais de 50 mil coreanos. Aqui em Porto Alegre tem 35 famílias só.” Nessa procura, se amparou em um chinês e a oferta para trabalhar em seu restaurante no centro da cidade pareceu ser a melhor opção.
Para os monitores do albergue, há, nessa história, algo de mal-contado. A documentação coreana – com visto até o ano que vem –, o português ainda com erros e a pouca idade não os deixam acreditar que Lee esteja em terras brasileiras há três décadas. Na verdade, todas as histórias que aqui contamos são incertas. “Muitos dos relatos acabam sendo construídos. Há muita fantasia nessa faixa da população”, completa Caio Basegio.