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Entre valas, tacos e cavalos


O caminho é estreito e tortuoso. Em alguns pontos a passagem não tem muito mais que um metro. O chão de terra batida é poluído por papéis de balas, sacos de pipoca, copos plásticos. Subindo a ladeira debaixo do sol do meio-dia nos deparamos com contêineres transformados em casas. Pulamos pelo esgoto a céu aberto e desviamos de inúmeros vira-latas. As crianças dançam ao som do funk que ressoa pela viela, nomeada oficialmente Avenida Frei Caneca. Onde contêiner é casa e um humilde beco é avenida, uma contradição chama ainda mais a atenção: o golfe da elite aqui é esporte do povo.


Não são necessários mais que dez passos para se descobrir um golfista na vila. Encravada há mais de 20 anos no nobre bairro Boa Vista, em frente à Avenida Nilo Peçanha em Porto Alegre, a Vila Caddie abriga grande parte dos trabalhadores do Porto Alegre Country Club, situado a poucos metros dali. “Quase todo mundo aqui trabalha como caddie lá” nos relata as senhoras que mateavam na entrada da vila. Caddie é o encarregado de carregar os tacos para os golfistas. Tarefa árdua, conta Alex Muniz, o primeiro dos carregadores com quem conversamos. “Trabalho quatro horas por dia, quase todos os dias, carregando tacos pesados.” A recompensa também não é das mais interessantes: de R$ 30 a R$ 50 por dia de trabalho. A quantia varia de acordo com o golfista, já que os caddies não são funcionários do clube e recebem uma espécie de gorjeta. Os ganhos são o suficiente para alimentar a família. Mesmo assim, o dinheiro só vem quando o tempo ajuda. Em dias de chuva, com o escasso movimento do Country Club, apenas alguns sortudos conseguem trabalho. “Se chove, a gente passa fome”, lamenta Alex.


A mais interessante das recompensas vem nas segundas-feiras. É nesse dia que a grama verde e lisa de um dos mais nobres clubes de Porto Alegre não é pisada pelos endinheirados, mas sim pelos caddies. Os tacos, dados ou emprestados pelos golfistas que treinam no clube, saem da sacola e vão para as mãos de quem os carrega a semana inteira. Quem se destaca sobre a grama do clube é Douglas Pacheco. Enquanto conversávamos com Alex, Douglas descia a ladeira com dois tacos sobre os ombros e uma bolinha na mão – cena comum por aquelas bandas. Alex alerta: “Esse cara aí é um dos melhores por aqui”. As premiações não mentem: Douglas já ganhou R$ 300 em um torneio em Brasília e R$ 1000 em São Paulo, com viagens financiadas pelo próprio clube. Consequência de anos de treino não só na verde relva do Country Club, mas também no “campo” da Vila Caddie.


Bem no meio do muro que separa a vila da área ao lado, um pequeno buraco nos permite enxergar um terreno irregular, repleto de pedras e mais uma quantidade impressionante de lixo. O grande lote pedregoso e esburacado em nada lembra o tapete do Country Club, mas parece ser o suficiente para a prática do esporte. Os moradores mais antigos já deixaram de lado o terreno pouco apropriado para o jogo. A experiência os fez temer as lesões. Nunca se sabe quando o taco pode acertar uma pedra no meio do campo. Alheios a isso e visivelmente apaixonados pelo esporte, crianças e jovens, de 5 a 16 anos, pulam o muro diariamente para dar suas tacadas. Alen “Pitbull” nos mostra sua habilidade. Era inevitável que, mesmo na vila do golfe, o futebol se mostrasse presente. Com o taco, Alen faz infinitas embaixadinhas sem que a pequena bola caia. Os outros garotos também demonstram saber o truque. Mais que isso, Bruno explica a diferença entre os diversos tacos que cada um dos meninos empunha: o driver para tacadas iniciais, fortes e longas; o iron para apenas rolar a bola em um tiro próximo ao buraco. Bruno calça as luvas, crava o tee na grama, segura o taco tal qual um profissional e, em um swing quase perfeito, gira sobre seus pés que vestem Havaianas, jogando a bolinha a perder de vista. O pequeno objeto sobrevoa valas cheias de água camufladas pela vegetação e encobre os cavalos pangarés que pastam após a manhã de trabalho. A bola para a poucos metros de um pedaço de pau com uma toalha vermelha pendurada, que simula a bandeirinha e indica que o buraco está próximo. Em fila indiana, os garotos repetem o movimento. Desta vez, as tacadas são curtas, dentro de um green (a área próxima ao buraco) imaginário. O campo irregular exige conhecimento. Só quem já passou por lá sabe das caídas do gramado e dos efeitos que a bolinha pode pegar até cair no buraco escavado.


Balançando o taco que dominam com intimidade, os mais de dez meninos caminham pelo terreno baldio. Mais três ou quatro entram no campo. Eles chegam a tempo de ver Renan. O bico pendurado no pescoço bate na cintura do menino de 5 anos. Ele desencosta do taco no qual apoiava o queixo e se prepara para um swing potente que, em poucos segundos, impulsionava a bola para longe. Grande parte dos garotos que jogavam naquele final de manhã quente – após a aula e antes do almoço – começou como Renan. O mais velho, Odair, 16 anos, conta que já joga há tempos. Quando tiver idade suficiente pretende seguir o trabalho do pai. Quer ser caddie: “É um dinheiro bom, né?!”. Por enquanto, eles apenas brincam, fazendo dos tacos armas que atiram as bolinhas em diversas direções, em um verdadeiro fogo cruzado. Onde a bola vai parar pouco importa, já que elas parecem brotar infinitamente dos bolsos dos casacos dos meninos. Na verdade, elas são dadas pelos golfistas do clube e frequentemente encontradas no meio da rua que percorre a vila – resquícios de tacadas imprecisas vindas do Country Club. Elas se proliferam entre os garotos e caddies, que chegam a transformá-las em chaveiros. Bolas perdidas também são perigosas: Alex Muniz relembra as diversas vezes em que sua casa, desafortunadamente localizada atrás de um dos buracos do clube, foi acertada.


Já é hora do almoço e as mães começam a chamar seus filhos para casa. Abandonamos o gramado pedregoso. Passamos por cima das tábuas que constituem o único acesso por terra entre a vila e o terreno baldio – o outro é por ar, pulando o muro -, atravessamos a casa que abre as portas para os meninos chegarem ao campo e estamos de volta a Avenida Frei Caneca. Seguimos nosso caminho, ainda impressionados com as hollywoodianas cenas que acabávamos de ver. Em pouco tempo, aquilo que há pouco presenciamos não se repetirá mais. A Vila Caddie está crescendo cada vez mais e o Departamento Municipal de Habitação já estuda transferi-la para outro local. Por enquanto, a bola segue voando sobre valas e cavalos.

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