POR GABRIEL HOEWELL E ARTHUR VIANA
As duas garrafas de Velho Barreiro protegem do frio; a roda de amigos, da solidão. Após 10 meses trabalhando como peão nas obras da Arena do Grêmio, no bairro Humaitá, Tércio da Silva, 48 anos, se despede de Porto Alegre. É um domingo chuvoso de fim de maio, o último dele na cidade. Com o estádio praticamente pronto, Tércio, natural da Bahia, e muitos dos que vieram ajudar a erguer o gigante de cimento retornam para seus estados e suas famílias. Não são poucos: para fazer surgir, no meio da Vila Liberdade, um estádio de futebol para 65 mil pessoas, somaram forças mãos de quase todo o Brasil – São Paulo, Piauí, Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba, Maranhão –, vizinhos da América do Sul – bolivianos, colombianos, paraguaios – e até mesmo portugueses.
As diferenças culturais são muitas. Talvez por isso que quando encontramos Augusto Milani (20), Marcos Roberto (18), Charles Ferreira (29) e Janaílson dos Santos (32) descansando em frente à Arena, próximo ao meio-dia, eles tenham feita uma estranha pergunta: “É verdade que vocês comem carne de cavalo aqui?”. Os dois primeiros são paulistas, Charles é maranhense e Janaílson, baiano. Já sentiam, com medo, o frio que ainda nem havia chegado. Toucas de lã protegiam os trabalhadores dos 19 graus que fazia.
Apesar do pouco tempo em Porto Alegre, os quatro, alocados em um alojamento em Cachoeirinha, já traçaram uma rotina. Após as longas horas de serviço, frequentam a Boate 46, inferninho vizinho ao dormitório. Janaílson, cliente assíduo, já não paga pelos serviços do local. Porém, mesmo com a rápida adaptação, nenhum deles pensa em permanecer no Rio Grande do Sul. O próximo passo, após a Arena, é ir a São Paulo e trabalhar nas obras de ampliação do aeroporto de Guarulhos. “Lá tem trabalho certo até 2018”, comenta Charles. Marcos Roberto já deu esse passo, mesmo que não por vontade própria: “A minha mulher foi ganhar neném e eu pedi cinco dias de licença. Não deram e me mandaram embora.... Fiquei triste demais”, nos contou em um segundo contato.
Rotina pesada
As obras na Arena se estendem desde meados de 2010. Em abril, mais de 30 meses depois de iniciados oficialmente os trabalhos, mil operários (mecânicos e eletricistas, principalmente) ainda cuidavam dos acabamentos. A rotina de trabalho é pesada e o preparo físico dos obreiros, invejável: somando-se as horas extras, a carga horária pode chegar a 101 horas semanais – o batente inicia às 7h30min e termina somente às 22h. Finais de semana se transformam em dias úteis e as folgas são raras.
Mesmo com a imensa demanda de trabalho, a compensação financeira fica longe do ideal: todos os entrevistados contaram que os salários dos auxiliares de obra no Rio Grande do Sul são os mais baixos do Brasil, girando em torno de R$ 1.200, no caso dos funcionários da Construtora OAS, multinacional baiana responsável pela obra da Arena. A situação é ainda pior para os obreiros do Beira-Rio, que trabalham para a empreiteira Andrade Gutierrez (AG): apesar de ali o salário ser mais alto, quando se subtrai os descontos o rendimento cai para aproximadamente R$ 700. Quem revela esse número é João Paulo Santana, 22 anos. Com o término das suas obrigações na Arena, ele migrou para as obras do estádio do Internacional. Além de ver o salário reduzido quase à metade, ele perdeu direito a uma vaga em alojamento: “A AG libera o alojamento só pra quem vem de fora. Como eu já tava em Porto Alegre, não recebi vaga”, conta. Hoje ele aluga uma casa junto com o colega Adenildo Santos, também peão do Beira-Rio.
João Paulo é natural da Paraíba, mas vivia há alguns anos em Salvador, cidade natal de Adenildo. Antes de dividirem um imóvel em Porto Alegre, eram vizinhos na Bahia. Com as condições de trabalho que enfrentam hoje, ambos pretendem deixar a capital gaúcha até setembro – se o frio não os afugentar antes disso. “Quando viemos para cá, a empresa prometeu uma coisa. A realidade é bem diferente”, revela João Paulo.
Operários da Arena, uni-vos!
O salário é baixo, o esforço, enorme. Ainda assim, os trabalhadores veem com bons olhos a experiência. Tércio não hesita em afirmar que valeu a pena o período vivido em Porto Alegre. “Não tanto pelo dinheiro, mas sim pela experiência e pelas amizades que construí”, relata o baiano. Morando em alojamentos em que chegam a dividir quarto com uma dezena de pessoas, os operários acabam criando vínculos de amizade com os colegas, na maioria, nordestinos.
Um caso específico, ocorrido no início de abril, exemplifica essa união da classe: após uma confusão em frente ao alojamento da Rua Dr. Barros Cassal, que abriga quase 100 pessoas, a Brigada Militar foi chamada. Um dos operários, exaltado e embriagado, descontou sua revolta nos brigadianos, que reagiram violentamente. O homem foi levado na viatura e nada mais se ouviu por três dias. Vendo a falta de mobilização para desvendar a questão, os funcionários da OAS organizaram uma paralisação, forçando a empresa a tomar medidas para resolver a situação. Em pouco tempo, o colega reapareceu. “Ele estava visivelmente dopado, internado em um hospital psiquiátrico e aparentando ter apanhado”, afirma Tércio. Para ele, foi a força da união dos trabalhadores que o trouxe de volta: “Nós temos que cuidar uns dos outros. Aqui, os nordestinos são uma família.”
Daniel de Jesus, 21 anos, trabalha pela primeira vez em obras, como servente. O jovem piauiense chegou ao Rio Grande do Sul a convite de um primo que mora em Canoas. Deixou o Piauí não por falta de oportunidades de emprego, mas pelo desejo de conhecer outra cidade. Esse, aliás, é um dos motivos da vinda de muitos dos operários, que contam, inclusive, com a possibilidade de transferência para países na África e América Central, onde as empreiteiras atuam.
Daniel não está morando em alojamentos. Vive com a nova namorada, moradora do bairro Navegantes. Ele, assim como João Paulo e Adenildo, não é o único a não morar nos alojamentos convencionais. Na Rua Max Juniman, há menos de um quilômetro da Arena do Grêmio, apartamentos foram alugados pela OAS em um dos blocos de um condomínio. Uma casa amarela logo em frente ao estádio é outra república nordestina no bairro Humaitá. A condição dos alojamentos da Rua Barros Cassal, de Cachoeirinha e da Av. Sertório divide opiniões. Ouvem-se reclamações sobre a estrutura, mas a crítica não é dura: na comparação com os demais alojamentos pelos quais já passaram, os operários garantem que o que encontram em Porto Alegre é suficientemente bom. Ao que tudo indica, Guarulhos, que parecia uma boa saída para os obreiros, também não é o lugar ideal para trabalhar: no mês de setembro, o Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 111 operários que trabalhavam em situação análoga à escravidão nas obras do aeroporto. A OAS divulgou nota declarando que “a empresa, nas pessoas dos seus representantes, não teve qualquer participação nos incidentes relatados”. O grupo baiano é responsável pelas obras de ampliação do local.
Nomeado “servente”, Daniel diz já ter feito de tudo um pouco na Arena. Nessa ocasião, controlava a saída de seus colegas em fim de expediente. Nove ônibus se acumulavam ao lado do estádio, prontos para distribuir os trabalhadores pelos alojamentos e pelos seis hotéis da Avenida Farrapos que hospedam alguns operários. Após ser revistado na saída do estádio, um mutirão de capacetes amarelos se dirige aos veículos. São 22h e mais um dia se encerra. Em poucas horas, outro começa.