O blazer escuro falhava miseravelmente ao tentar esconder o espírito de Fernando Gabeira, escancarado pela camisa floreada que vinha logo abaixo. Célebre por ter se declarado favorável à legalização da maconha, pelas posições em defesa do meio ambiente e das minorias, Gabeira é membro-fundador do Partido Verde, jornalista, escritor e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Já soma 50 anos de atividade política. Mas, antes de gozar dos benefícios e contradições da democracia, ele precisou lutar contra a ditadura dos militares: atuou no Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8), participou de sequestros, foi alvejado por revólveres, preso, torturado e exilado. Viveu 10 anos longe do Brasil, passando por Chile, Itália e Suécia, onde estudou Antropologia. Na volta, após a Lei da Anistia, em 1979, seguiu lutando, através do jornalismo e da escrita, pelo fim do regime militar.
Nosso encontro ocorreu em uma sala reservada do Aeroporto Internacional Salgado Filho. Gabeira estava em rápida passagem por Porto Alegre, vinha participar de um fórum que debatia a defesa dos animais e, poucas horas depois, embarcaria novamente para seguir divulgando seu recém-lançado livro Onde está tudo aquilo agora? – Minha vida na política. A obra, segundo ele, “é um balanço da minha vida na política, desde quando eu comecei a atuar no movimento estudantil. Eu conto os principais episódios que vivi, as principais situações do Brasil, as principais esperanças que nós tivemos e dou um balanço do que restou dessas esperanças. Então, o livro é, na verdade, uma avaliação de 50 anos de atividade política no Brasil.”
Antes de conversar conosco, atende a telefonemas de diversas partes do Brasil. Pouco mais de 12 horas antes, falecera Oscar Niemeyer, e a morte – que parecia que nunca viria – ainda repercutia nas rádios. Queriam saber de Gabeira qual sua relação com o maior arquiteto brasileiro. O entrevistado se disse grato pelo apoio de Niemeyer à sua candidatura na prefeitura do Rio de Janeiro. Não negou, porém, as divergências políticas: “Eu tenho uma visão critica do comunismo e do que ele representou; ele se manteve fiel a essas ideias.”
No começo da sua carreira política, o senhor foi um importante militante de esquerda, em especial na luta contra a ditadura. Os próprios militantes, já na época, faziam uma autocrítica desse movimento. Como o senhor analisa os anos de luta contra os militares? Onde o movimento errou e acertou?
Nós vivíamos sob o impacto da Guerra Fria. O mundo estava dividido entre o capitalismo e o socialismo, e nós fizemos uma opção pelo socialismo contra o capitalismo. Essa opção já foi um pouco romântica, porque o socialismo pelo qual nós estávamos lutando não se revelou exatamente o que a gente esperava quando nós fomos visitar e viver nos países onde ele existia: em Cuba, na Rússia, nos países do Leste Europeu, na Alemanha Oriental. Ficou bastante claro pra nós que o socialismo pelo qual lutávamos não era realmente o sistema que imaginávamos. O fato de nós termos optado por isso não significa grandes questões – porque você pode mudar em um certo momento, chegar a outra conclusão – mas, de qualquer maneira, foi um erro. O segundo erro que me pareceu grave foi ter optado pelo caminho armado. Nós não tínhamos condições de enfrentar a ditadura militar de uma forma eficaz, lutamos contra ela armados e acabamos involuntariamente contribuindo para que ela ficasse mais sólida e mais repressiva contra grupos que não atuavam com violência. A opção pelo socialismo e pela luta armada foram, naquele momento, erros históricos.
O senhor chegou a dizer que se lutava contra a ditadura instalada; não se lutava por uma democracia, mas sim por uma ditadura do proletariado.
O que eu disse na época e digo agora é que havia, entre os opositores da ditadura, gente que estava lutando pela democracia e gente que estava lutando pela ditadura do proletariado. O que é a ditadura do proletariado? Uma forma de governo que era proposta pelo Partido Comunista, especificamente pelo Lenin. Dizia-se que nós íamos partir para o socialismo, através da ditadura do proletariado íamos eliminar a exploração do homem pelo homem e chegaríamos ao comunismo. Então, essa forma, a “ditadura do proletariado”, é uma ditadura. Portanto, o que eu digo é que estávamos lutando, dentro dos conceitos da formulação da nossa política, por uma ditadura do proletariado. Isso estava presente em todos os programas políticos que tínhamos.
Na campanha de 1986, o senhor fez algo diferente do que se via normalmente na militância política, com a passeata “Fala mulher”, que coloriu as ruas com flores, e o “Abraço à Lagoa”. É possível que a forma de se fazer a militância política hoje esteja equivocada e acabe afastando as pessoas em vez de atraí-las?
Eu acredito. Os partidos políticos atraíram pessoas muito oportunistas e não formulam mais muito sobre a vida do País, o futuro, o horizonte. Eles ficaram muito presos aos seus programinhas, aos empregos que disfrutam, ao pequeno poder que também disfrutam. Quando nós fundamos o Partido Verde, já discutíamos muito se o partido político era um instrumento. A gente achava que o partido politico já estava esgotado como instrumento, mas não tínhamos achado outro ainda. Daí a gente ter feito o Partido Verde como uma tentativa de ser um partido diferente de todos os outros, mas que pudesse apresentar uma proposta para o futuro, para a sociedade. Com o tempo, a gente percebeu que o próprio Partido Verde ficou um pouco velho. Ele, de certa maneira, ficou parecido com os outros.
Hoje, eu continuo olhando para sociedade para ver quais são as formas de organização que podem suprir esta lacuna que os partidos deixaram. E, olhando a sociedade, observando como eles se comportam, eu acho que talvez essa lacuna não seja preenchida por um novo partido. As formas de organização que se deram a partir das novas tecnologias, dos novos meios tecnológicos, mostram que a rede hoje é um instrumento muito mais eficaz de organização do que o próprio partido. É possível, através da rede, você trocar informações, trocar ideias, chegar a conclusões interessantes e inclusive programar ações.
Como, no sistema político que temos hoje no Brasil, que envolve diversas alianças entre diversas siglas, um partido menor chegaria ao poder?
Olha, eu acho difícil. Eu sempre achei que é muito difícil você chegar sozinho e é também extremamente difícil chegar com os outros. Chegar sozinho é difícil porque você não colhe os votos necessários; chegar com os outros é problemático porque você tem que dividir o poder, você tem que lotear o governo entre os partidos aliados. A fórmula que eu encontrei no Rio de Janeiro, em 2008 [para prefeito] e 2010 [para governador], para disputar foi a seguinte: “Olha, nós vamos disputar as eleições com um pequeno partido, os outros partidos apoiam, mas nós não vamos ratear o governo. Nós vamos colocar no governo pessoas competentes da sociedade e só aceitaremos a presença de políticos dentro do governo se eles forem capazes e honestos e estiverem preparados especificamente para aquele lugar que eles ocupam.” Foi a maneira que eu achei para contornar esse problema. Sem alianças, você não chega ao governo; com alianças, você chega desfigurado. A única forma é chegar ao governo de uma maneira tal que você pré-estabeleça que não vai ratear.
O senhor sempre é referência quando o debate é a maconha. Hoje, testemunhamos a movimentação no Uruguai em prol da legalização. Qual a sua opinião atualmente: a legalização da maconha no Brasil seria um avanço ou um retrocesso?
Este tema nós começamos a discutir no Brasil em 1996, mais ou menos. Eu estava vindo da Europa com a posição de lutar pela legalização e o governo decidiu, naquele momento, que precisava renovar a lei – não legalizar, mas atualizar a lei no Brasil. Então ele chamou a mim e estimulou que fizéssemos um grande debate nacional sobre o tema. E fizemos isso – eu defendendo a liberação. Mas com o tempo eu percebi que discutir só liberar ou não é muito limitado. Você tem uma série de argumentos pró, uma série de argumentos contra. Eu já conhecia os argumentos contra, meus companheiros conheciam os argumentos a favor, mas o que mais me interessa hoje é exatamente saber como é possível realizar isso. Alguns países que legalizaram, como a Holanda e a Inglaterra (em certas áreas), fizeram com a orientação da própria polícia. A polícia na Inglaterra orientou a liberar onde há muitos imigrantes jamaicanos e um consumo grande de maconha porque ela dizia o seguinte: ”Cada pessoa que eu prendo com um baseado eu tenho que fazer quatro horas de processo, então é muito tempo pra nós, nós temos coisas mais importantes para fazer.” Então foi a polícia que orientou. Também na Holanda eu pude observar, nos coffeeshops, onde se fuma, que lá é proibido você entrar de chapéu. Porque eles estão filmando, tudo é filmado. Então a ideia que a gente tem da Holanda, de que liberou geral, não é bem assim. Talvez a ideia mais próxima seja de que é um controle mais sofisticado. Então a minha posição é a de que a liberação só é possível com uma reforma da polícia também. A polícia no Brasil hoje é incapaz de reprimir porque é cooptada pelo tráfico. Anteontem mesmo prenderam 60 PMs [policiais militares] de Caxias [Duque de Caxias, no Rio de Janeiro] que estavam envolvidos com tráfico de drogas. Sessenta! Praticamente quase todos do batalhão, né!? Então ela não tem condições de reprimir e não tem condições de liberar, porque também os efeitos colaterais têm que ser tratados. Portanto, é preciso uma reforma da polícia. A gente tem que ter uma polícia melhor preparada, melhor paga, melhor treinada, para que realmente a gente possa pensar nisso.