POR GABRIEL HOEWELL, ARTHUR VIANA E SERGIO TRENTINI
A camisinha que estoura, ou sequer é usada, a menstruação que não vem. A barriga que cresce. A bronca da mãe e o desespero do pai – mas ainda é uma criança! –, ambos esquecendo que não muitos anos antes eram eles que engravidavam antes da hora. Meninas desde cedo preparadas para a maternidade, cuidando dos irmãozinhos e da casa, engravidam e completam um ciclo incômodo, que faz com que jovens – em especial as de baixa renda, com pouco acesso a métodos contraceptivos – tenham filhos antes mesmo de deixarem de ser criança e de possuírem estrutura para ser mãe. A gravidez na adolescência, nesses casos, pode não implicar em ruptura de planos de vida: apenas são parte de uma trajetória diferente da imaginada pela classe média e consequência do que o meio oferece.
A barriga redonda que parecia não combinar com o rosto daquela jovem menina sinalizava os oito meses de gestação. Ainda assim, Aline, 14 anos, falava com autoridade sobre o bebê que estava por vir, demonstrando uma maturidade precoce, talvez forçada pela gravidez. Ela conta que foram os pais que descobriram que ela estava grávida: “Eles notaram que eu estava mais redonda e desconfiaram”. Exames confirmaram mais tarde que o chute fora certeiro: Aline já estava com cinco meses e meio de gestação. Questionada sobre a reação dos pais com a descoberta, a jovem esboça um sorriso; a mãe, Ana Carla, sentada próxima, interfere e responde pela filha: “Não foi fácil, abalou a família. Mas estamos entendendo”.
Para ajudar nos cuidados ao bebê que está por vir, Ana Carla cogita mudar de emprego e ter, assim, um turno livre, podendo ficar em casa mais tempo, auxiliando no que for necessário. Não que Aline peça por ajuda, afinal ela diz que a gravidez não assusta e que sabe cuidar de criança, lembrando que ajudou na criação da irmã mais nova, de 8 anos. Mas a jovem mãe ainda precisa ir para o colégio – em 2014, ela vai cursar o primeiro ano do Ensino Médio – e, nesses momentos, o bebê precisará de alguém. No caso, Ana Carla.
A gravidez veio após uma relação sexual sem camisinha com o namorado, Leonardo. Aline não tomava pílulas contraceptivas. A jovem conta que a gravidez não afastou o casal: eles estão juntos há um ano, mesmo com a resistência de Ana Carla. A mãe de Aline se resigna e diz aceitar o relacionamento, uma vez que não pode impedi-lo. “A família do pai é muito humilde. Ele é um menino pobre que mora com a avó aposentada, e não trabalha. Eu acho que ele não vai assumir e, se for assim, prefiro que suma. Quanto menos problemas pra nós, melhor. Condições de criar a gente vai ter, sempre se dá um jeitinho”, ela afirma.
Mãe de três filhas (Aline é a mais velha, as outras têm 12 e 8 anos), Ana Carla sabe bem se virar nessas situações: além de também ter sido mãe cedo, aos 19 anos (“naquela época era diferente”, se defende, acrescentando que já estava casada desde os 17), ela já teve uma creche em sua casa, onde cuidava de oito crianças simultaneamente, e, ainda criança, aos 9 anos, ajudou no parto do sobrinho, que nasceu em casa.
Aline vai ter um menino, o João Gabriel. Mexendo no celular, ela mostra fotos do quarto dele, que já está pronto. A parede azul, o berço e a banheira com trocador esperam pela criança.
Evasão escolar é anterior
Assim como Ana Carla diz que ela e Aline “darão um jeito”, Vitória, 16 anos, também não demonstra medo do bebê que já pede passagem (são nove meses de gestação). Quando perguntamos sobre a questão financeira, ela responde que vai “estudar e trabalhar, que é o melhor que eu faço”, acrescentando que seu marido trabalha e ajudará nas despesas. Apesar de o estudo e o trabalho serem “o melhor que faz”, Vitória não está realizando nem um nem outro no momento. “Larguei o colégio na sétima série, de ‘sem vergonha’ que sou”, conta, revelando planos de voltar para a escola em 2014.
Uma pesquisa elaborada e executada em 2008 por pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade Federal da Bahia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Institut National d'Etudes Démographiques, de Paris, aponta que os jovens pais pobres não ficam excluídos da escola e do trabalho por causa da gestação: eles já estão fora desse meio antes mesmo da gravidez. A Gravad, como foi chamada a pesquisa, mostrou que 40% das mulheres e 48% dos homens que tiveram o primeiro filho com até 19 anos já não estavam mais no sistema escolar e assim permaneceram. Entre as mães, 18,4% pararam completamente de estudar e, entre os pais, 14,8%.
Vitória mora no bairro Navegantes e divide a casa com a tia, Solange, o tio, um primo e o marido. Não faltarão cuidados para a Isadora, nome da menina que vai nascer em breve: Vitória diz ter experiência com bebês, pois ajuda a cuidar de seu irmão de 2 anos desde o seu nascimento. Solange, que é na verdade tia-mãe de Vitória, pois cuidou dela desde que esta saiu do hospital pela primeira vez, também auxiliará nos cuidados à pequena Isadora. A mãe de Vitória a entregou ainda bebê para Solange porque não teria condições para criá-la, uma vez que trabalhava e o pai bebia demais, além de ser usuário de drogas. Nessa época, a mãe de Vitória tinha “vinte e poucos anos”, conta Solange, mas a primeira gravidez dela foi mais cedo, aos 14 anos.
Trajetória de vida é uma construção social
Hanna, 15 anos, descobriu no último novembro que estava grávida. Não foi surpresa: durante uma relação sexual com o namorado, a camisinha havia estourado, o que deixou a jovem preocupada. Ela não usava nenhum anticoncepcional. Para a avó, Eloí, a gravidez da neta também não foi nenhuma novidade, afinal, ela nunca estava em casa; dizia sempre estar na casa das amigas. “Agora está feito, não adianta se escabelar”, se conforma a avó.
Hanna também foi concebida cedo – seus pais tinham 18 anos. Mães jovens acabam por se tornar avós antes da hora, um ciclo incômodo que as histórias de Aline, Vitória e Hanna comprovam. Para a professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Andréa Fachel Leal, trata-se de uma questão anterior à gravidez. Tendo que trabalhar, muitas mulheres deixam as crianças mais novas aos cuidados da filha mais velha, e assim as meninas vão sendo “socializadas” para serem mães. “Com muita frequência, quem está em situação de maior vulnerabilidade está sendo socializada para ser mãe. Elas vão aprendendo, têm atribuições domésticas, cuidam dos irmãos. As meninas não sofrem tanto a ruptura”, diz Andréa.
A concepção de “ruptura” na gravidez adolescente, aponta a professora, aproxima-se muito do projeto de vida pensado pela classe média. “A trajetória de vida constituída por estudos seguidos pelo casamento e, depois, pela gravidez é uma construção social que nem sempre condiz com a realidade”, afirma. Os planos são outros e se adaptam ao que o meio oferece.
Em populações mais pobres, a gravidez durante a adolescência pode não ser indesejada. Em alguns casos, essa é uma forma de passagem para a vida adulta e de reconhecimento social. Este pode ser um valor muito mais importante do que a carreira escolar, por exemplo. “A maternidade pode ser um valor. Se não oferecermos perspectivas concretas para a menina, aquilo é interessante”, completa a professora.
Aborto clandestino mascara números
Responsável pelo Programa de Assistência Integral à Gestante Adolescente (Paiga) no Hospital Presidente Vargas, Ezaltina Panziera conta que o acesso ao aborto clandestino por parte das jovens de classe mais alta mascara os números da gravidez na adolescência. Meninas mais pobres acabam obrigadas a lidar com a barriga e o bebê. Táticas preventivas, afirma a médica, são insuficientes: “Muitas vezes falta anticoncepcional nos postos de saúde”, diz. Ezaltina afirma que as farmácias mais próximas às principais escolas particulares de Porto Alegre estão entre as maiores vendedoras do medicamento.
Andréa corrobora a visão de Ezaltina: “A invisibilidade da gravidez na adolescência entre as classes mais altas se dá pelo fácil acesso ao aborto um pouco mais seguro”, afirma. Segundo pesquisa de 2010 da Universidade de Brasília (UnB), o índice de mulheres que abortam, independente da idade, é significativo em todos os estratos: 23% delas ganhavam até um salário mínimo, 31% de um a dois, 35% de dois a cinco e 11% mais que cinco. A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), também de 2010, ressalta o risco que abortos clandestinos representam: segundo o estudo, 55% das mulheres que fizeram aborto ficaram internadas em razão do procedimento. A PNA indica que o aborto é tão comum no Brasil que, ao completar 40 anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto.